sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Pacto das Catacumbas pela Casa Comum. Por uma Igreja com rosto amazônico, pobre e servidora, profética e samaritana.

Por Luis Miguel Modino

O Pacto insiste em mudar o modo de trabalho pastoral na Amazônia, da visita à presença, garantindo que “o direito à Mesa da Palavra e à Mesa da Eucaristia se torne eficaz em todas as comunidades”.
Existem lugares que têm um significado especial e se tornam uma referência na vida de pessoas e instituições. O Concílio Vaticano II foi uma época em que uma Igreja pobre e pobre queria ser construída, algo que se expressou em 16 de novembro de 1965, na catacumba de Santa Domitila, onde cerca de quarenta bispos, principalmente da América Latina, assinaram o Pacto da Catacumbas. Em treze cláusulas os signatários prometeram levar uma vida simples e sem posses.

Em 20 de outubro de 2019, pode se tornar uma data histórica novamente, porque no mesmo local em que o Pacto das Catacumbas foi assinado, o Pacto das Catacumbas pela Casa Comum foi rubricado, no desejo de assumir uma Igreja com rosto amazônico, pobre e servidora, profética e samaritana. Mais uma vez, houve cerca de 40 bispos, acompanhados por outros padres sinodais, auditoras, auditores, peritas e peritos, além de alguns participantes da Amazônia Casa Comum, que juntos celebraram uma Eucaristia presidida pelo cardeal Claudio Hummes, alguém que tem grande respeito e admiração entre os bispos da região, e que também contou com a presença do cardeal Pedro Barreto.

As Catacumbas eram lugares onde os primeiros cristãos derramaram seu sangue, portanto, o gesto feito não início da celebração de selar o sangue com o polegar em um pano pode ser considerado um compromisso de uma Igreja que quer ser uma semente da vida na Amazônia, seguindo o que foi feito há mais de 50 anos no mesmo local, momento cujo significado foi explicado aos mais de 200 participantes da celebração pelo teólogo brasileiro José Oscar Beozzo. A lembrança do primeiro pacto também esteve presente na estola tantas vezes usada por Don Helder Câmara, um de seus grandes inspiradores, com a qual celebrou o cardeal Hummes, que, segundo ele, o emocionou, e que no final da celebração entregou para Dom Erwin Kräutler, um dos grandes profetas vivos na Amazônia. Também a túnica de Dom Helder, com o qual estava revestido Dom Adriano Ciocca, bispo de São Félix do Araguaia, onde um dos que levou esse pacto ao extremo, Pedro Casaldáliga, foi bispo.

Em sua homilia, o cardeal Hummes definiu o momento como comovente e significativo, em um lugar que era refúgio para cristãos perseguidos, de martírio, em “uma terra santa que nos inspira”. Como aconteceu com os primeiros cristãos, o cardeal pediu a Deus que fortaleça a Igreja, que sempre que for reformada, e o Sínodo da Amazônia e uma tentativa de buscar novos caminhos, deve retornar às suas raízes, purificar e redescobrir o grande conteúdo da mensagem de Jesus e reencarna-la em nosso tempo. Seguindo as palavras de Paulo na liturgia da Palavra, Hummes fez um chamado para anunciar a Palavra na Amazônia, também àqueles que se opõem ao projeto de Deus, servindo exclusivamente dinheiro, para que se convertam. Ao mesmo tempo, ele insistiu na necessidade e força da oração, algo muito necessário neste Sínodo, para que Deus ilumine e leve a escutar a voz dos povos e neles a voz do Espírito.

O texto contém quinze compromissos, que visam mostrar “um sentimento de urgência que se impõe diante das agressões que hoje devastam o território amazônico, ameaçado pela violência de um sistema econômico predatório e consumista”. Os compromissos têm um claro caráter ecológico, nascido do fato de “reconhecer que não somos donos da mãe terra”, algo que compromete os signatários a “acolher e renovar todos os dias a aliança de Deus com tudo o que é criado”.

Em continuidade ao Pacto de 1965, é renovado o compromisso com os pobres, hoje representados nos povos originários, chamados a “ser protagonistas da sociedade e da Igreja”, que exige respeito e aceitação em pé de igualdade, abandonando “todo tipo de mentalidade e posição colonialista” e a denúncia de “todas as formas de violência e agressão” contra os povos indígenas, sua identidade, seus territórios e seus modos de vida.

A proclamação do Evangelho deve partir da acolhida daqueles que vivem em outra cultura e que professam outra religião, mesmo com os que fazem parte da Igreja Católica, com quem é necessário caminhar juntos, em sinodalidade, que deve ser traduzida na vida cotidiana das dioceses, paróquias e comunidades, e na ministerialidade, que possibilite a atenção aos mais vulneráveis e excluídos.

O Pacto insiste em mudar o modo de trabalho pastoral na Amazônia, da visita à presença, garantindo que “o direito à Mesa da Palavra e à Mesa da Eucaristia se torne eficaz em todas as comunidades”, em um compromisso claro com a ordenação de homens casados, que está ligado à necessidade de “reconhecer os serviços e a verdadeira diaconia do grande número de mulheres que hoje dirigem comunidades na Amazônia e procurar consolidá-las com um ministério apropriado de mulheres líderes comunitárias. “

A atenção pastoral nas cidades, o papel dos leigos e da juventude, a atenção às periferias e migrantes, trabalhadores e desempregados, os estudantes, educadores, pesquisadores e o mundo da cultura e da comunicação são elementos abordados no texto. Ele faz um apelo para deixar de lado o consumismo e assumir “um estilo de vida alegremente sóbrio, simples e solidário”, com atitudes de cuidado da Casa Comum e compromisso com os profetas e os pobres.
O Pacto das Catacumbas mudou a vida de muitos bispos e o rumo de muitas igrejas no pós-concilio. Peçamos para que esse novo pacto possa mudar os destinos de uma igreja que busca novos caminhos, a serviço do cuidado do que sustenta nossa vida, nossa casa Comum. Os pastores se comprometeram, que eles também saibam transmitir esse compromisso àqueles a quem o Senhor lhes confiou.









Por uma Igreja com rosto amazônico, pobre e servidora, profética e samaritana

Nós, participantes do Sínodo Pan-amazônico, partilhamos a alegria de habitar em meio a numerosos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, migrantes, comunidades na periferia das cidades desse imenso território do Planeta. Com eles temos experimentado a força do Evangelho que atua nos pequenos. O encontro com esses povos nos interpela e nos convida a uma vida mais simples de partilha e gratuidade.  Marcados pela escuta dos seus clamores e lágrimas, acolhemos de coração as palavras do Papa Francisco:

“Muitos irmãos e irmãs na Amazônia carregam cruzes pesadas e aguardam pela consolação libertadora do Evangelho, pela carícia de amor da Igreja.  Por eles, com eles, caminhemos juntos”[1].

Evocamos com gratidão aqueles bispos que, nas Catacumbas de Santa Domitila, ao término do Concílio Vaticano II, firmaram o Pacto por uma Igreja servidora e pobre[2].  Recordamos com veneração todos os mártires membros das comunidades eclesiais de base, de pastorais e movimentos populares; lideranças indígenas, missionárias e missionários, leigas e leigos, padres e bispos, que derramaram seu sangue, por causa desta opção pelos pobres, por defender a vida e lutar pela salvaguarda da nossa Casa Comum[3]. À gratidão por seu heroísmo unimos nossa decisão de continuar sua luta com firmeza e coragem. É um sentimento de urgência que se impõe ante as agressões que hoje devastam o território amazônico, ameaçado pela violência de um sistema econômico predatório e consumista.

Diante da Trindade Santa, de nossas Igrejas particulares, das Igrejas da América Latina e do Caribe e daquelas que nos são solidárias na África, Ásia, Oceania, Europa e no norte do continente americano, aos pés dos apóstolos Pedro e Paulo e da multidão dos mártires de Roma, da América Latina e em especial da nossa Amazônia, em profunda comunhão com o sucessor de Pedro, invocamos o Espírito Santo,   e  nos comprometemos pessoal e comunitariamente com o que se segue:


  1. Assumir, diante da extrema ameaça do aquecimento global e da exaustão dos recursos naturais, o compromisso de defender em nossos territórios e com nossas atitudes a floresta amazônica em pé. Dela vêm as dádivas das águas para grande parte do território sul-americano, a contribuição para o ciclo do carbono e regulação do clima global, uma incalculável biodiversidade e rica socio diversidade para a humanidade e a Terra inteira.
  2. Reconhecer que não somos donos da mãe terra, mas seus filhos e filhas, formados do pó da terra (Gn 2, 7-8)[4], hóspedes e peregrinos (1 Pd 1, 17b e 1 Pd 2, 11)[5], chamados a ser seus zelosos cuidadores e cuidadoras (Gn 1, 26)[6]. Para tanto, comprometemo-nos com uma ecologia integral, na qual tudo está interligado, o gênero humano e toda a criação porque a totalidade dos seres são filhas e filhos da terra e sobre eles paira o Espírito de Deus (Gn 1, 2).
  3. Acolher e renovar a cada dia a aliança de Deus com todo o criado: “De minha parte, vou estabelecer minha aliança convosco e com vossa descendência, com todos os seres vivos que estão convosco, aves, animais domésticos e selvagens, enfim, com todos os animais da terra que convosco saíram da arca (Gn 9, 9-10 e Gn 9, 12-17[7]).
  4. Renovar em nossas igrejas a opção preferencial pelos pobres, em especial pelos povos originários, e junto com eles garantir o direito de serem protagonistas na sociedade e na Igreja. Ajudá-los a preservar suas terras, culturas, línguas, histórias, identidades e espiritualidades. Crescer na consciência de que estas devem ser respeitadas local e globalmente e, consequentemente favorecer, por todos os meios ao nosso alcance, que sejam acolhidas em pé de igualdade no concerto mundial dos demais povos e culturas.
  5. Abandonar, como decorrência, em nossas paróquias, dioceses e grupos toda espécie de mentalidade e postura colonialista, acolhendo e valorizando a diversidade cultural, étnica e linguística num diálogo respeitoso com todas as tradições espirituais.
  6. Denunciar todas as formas de violência e agressão à autonomia e direitos dos povos originários, à sua identidade, aos seus territórios e às suas formas de vida.
  7. Anunciar a novidade libertadora do evangelho de Jesus Cristo, na acolhida ao outro e ao diferente, como sucedeu com Pedro na casa de Cornélio: “Vós bem sabeis que a um judeu é proibido relacionar-se com um estrangeiro ou entrar em sua casa. Ora, Deus me mostrou que não se deve dizer que algum homem é profano ou impuro” (At 10, 28)[8].
  8. Caminhar ecumenicamente com outras comunidades cristãs no anúncio inculturado e libertador do evangelho, e com as outras religiões e pessoas de boa vontade, na solidariedade com os povos originários, com os pobres e pequenos, na defesa dos seus direitos e na preservação da Casa Comum
  9. Instaurar em nossas igrejas particulares um estilo de vida sinodal, onde representantes dos povos originários, missionários e missionárias, leigos e leigas, em razão do seu batismo, e em comunhão com seus pastores, tenham voz e voto nas assembleias diocesanas, nos conselhos pastorais e paroquiais, enfim em tudo que lhes compete no governo das comunidades.
  10. Empenhar-nos no urgente reconhecimento dos ministérios eclesiais já existentes nas comunidades, exercidos por agentes de pastoral, catequistas indígenas, ministras e ministros e da Palavra, valorizando em especial seu cuidado em relação aos mais vulneráveis e excluídos.
  11. Tornar efetiva nas comunidades a nós confiadas a passagem de uma pastoral de visita a uma pastoral de presença, assegurando que o direito à Mesa da Palavra e à Mesa de Eucaristia se torne efetivo em todas as comunidades.
  12. Reconhecer os serviços e a real diaconia do grande número de mulheres que hoje dirigem comunidades na Amazônia e procurar consolidá-los com um ministério adequado de mulheres dirigentes de comunidade.
  13. Buscar novos caminhos de ação pastoral nas cidades onde atuamos, com protagonismo de leigos e jovens, com atenção às suas periferias e aos migrantes, aos trabalhadores e aos desempregados, aos estudantes, educadores, pesquisadores e ao mundo da cultura e da comunicação[9].
  14. Assumir diante da avalanche do consumismo um estilo de vida alegremente sóbrio, simples e solidário com os que pouco ou nada tem; reduzir a produção de lixo e o uso de plásticos, favorecer a produção e comercialização de produtos agroecológicos, utilizar sempre que possível o transporte público.
  15. Colocar-nos ao lado dos que são perseguidos pelo profético serviço de denúncia e reparação de injustiças, de defesa da terra e dos direitos dos pequenos, de acolhida e apoio a migrantes e refugiados. Cultivar amizades verdadeiras com os pobres, visitar as pessoas mais simples e os enfermos, exercitando o ministério da escuta, da consolação e do apoio que trazem alento e renovam a esperança.


Conscientes de nossas fragilidades, de nossa pobreza e pequenez diante de tão grandes e graves desafios, confiamo-nos à oração da Igreja. Que sobretudo nossas Comunidades Eclesiais nos socorram com sua intercessão, afeto no Senhor e, sempre que necessário, com a caridade da correção fraterna.

Acolhemos de coração aberto o convite do Cardeal Hummes para nos deixarmos guiar pelo Espírito Santo nestes dias do Sínodo e no retorno às nossas igrejas:

“Deixem-se envolver no manto da Mãe de Deus e Rainha da Amazônia. Não deixemos que nos vença a auto-referencialidade, mas sim a misericórdia diante do grito dos pobres e da terra. Será necessária muita oração, meditação e discernimento, além de uma prática concreta de comunhão eclesial e espírito sinodal. Este sínodo é como uma mesa que Deus preparou para os seus pobres e nos pede a nós que sejamos aqueles que servem à mesa”[10].

Celebramos esta Eucaristia do Pacto como “um ato de amor cósmico. “Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja de aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo”. A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no Pão Eucarístico “a criação propende para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador”. “Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e motivação para as nossas preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da criação inteira”.[11]

Catacumbas de Santa Domitila

Roma, 20 de outubro de 2019

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