Entrevista com Felício Pontes, Procurador Regional da República
Por Pe. Luis Modino
O Papa Francisco, em Laudato Si, diz que tudo está interligado, uma afirmação que se constata nas palavras de Felício Pontes, Procurador Regional da República. Nascido numa família de origem ribeirinha na Amazônia, ele é um dos grandes defensores dos povos da região, combatendo o modelo predatório que destrói o bioma amazônico e a vida de seus povos. Em virtude disso, ele foi convocado pelo Papa Francisco para fazer parte da assembleia do Sínodo para a Amazônia, que vai acontecer de 6 a 27 de outubro, no Vaticano.
Para estranheza de alguns, “Nós estamos num caminho dentro da Igreja que coincide muito com caminho que a área jurídica está trilhando na Pan-Amazônia.”, afirma o procurador, numa tentativa de reconhecer a importância dos aportes das populações locais, depois de 500 anos de um modelo europeu. “A Igreja agora se deu conta de que não há como buscar um rosto amazônico sem levar em consideração aqueles pensamentos, tradições, a cultura, das sociedades que vivem na Amazônia”, algo que teve um impulso significativo com o Sínodo para a Amazônia. Na opinião de Felício Pontes, “se o Sínodo conseguir dar esse passo, de fazer com que as propostas que vieram da base sejam incorporadas pela Igreja Católica, o processo de transição de uma sociedade hegemônica e colonialista para uma sociedade plural, que respeita a todos, será mais célere”.
Dentro do processo sinodal, o Procurador Regional da República destaca o processo de escuta, “que foi uma das coisas mais extraordinárias que se passou na Igreja nos últimos anos”, até o ponto de afirmar, “que desde o Concílio Vaticano II não se tem algo tão participativo dentro da Igreja”.
O senhor sempre trabalhou na defesa dos povos da Amazônia desde seu trabalho como Procurador da República. O que significa para alguém que sempre trabalhou nisso e que além disso é cristão, católico, que agora a Igreja convoque um Sínodo para ter como foco principal a defesa da Amazônia e de seus povos?
Nós estamos num caminho dentro da Igreja que coincide muito com o caminho que a área jurídica está trilhando na Pan-Amazônia. Nós também recebemos o Direito europeu para ser implantado as Américas. Esse Direito não levou em consideração os povos originários. Ao contrário, era um Direito que no primeiro momento escravizou esses povos e promoveu o genocídio. Num segundo momento, esses povos foram tutelados, considerando que não tinham desenvolvimento mental suficiente para serem sujeitos de direito. Somente no fim do Século passado, é que a legislação, por luta dos povos da floresta, se deu conta de que todas essas pessoas são sujeitos de direitos, e possuem o direito à autodeterminação. Eles têm o direito de traçar os seus próprios destinos e não seus destinos serem traçados por outras pessoas.
O Sínodo da Amazônia propõe uma nova relação da Igreja Católica para com os povos originários, comunidades quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais que habitam a região. Esses novos ventos amazônicos encontram eco não apenas na Igreja Católica, como também nas instituições jurídicas, onde esse processo é chamado de interculturalidade.
Em resumo, não se pode mais impor nossa cultura quando se está diante de uma cultura diferente. É necessário reconhecer a importância desses grupos minoritários para as decisões estatais. É necessário internalizar as diversas cosmovisões nas estruturas institucionais do Estado. É necessário valorizar o conhecimento desses grupos como dádiva à humanidade.
Em verdade, trata-se da consagração do pluralismo político, que é a tal ponto importante no sistema jurídico brasileiro que a Constituição o elencou em seu artigo 1º como um dos fundamentos da República, ao lado da dignidade da pessoa humana.
Nós estamos num caminho dentro da Igreja que coincide muito com caminho que a área jurídica está trilhando. Ela está pela primeira vez levando em consideração as opiniões, crenças, tradições e espiritualidade dos povos originários, dos povos e comunidades tradicionais.
O Direito já deu passos à frente. Temos decisões judiciais hoje, tanto nos tribunais do Brasil, da Colômbia, do Peru, da Bolívia, como da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a Pan-Amazônia que estabelecem que deve ser, antes de tudo, levado em consideração a opinião e os modos de vida dessas comunidades. Isso já é jurisprudência, não é só lei.
Então, o que nós vivemos é um processo de transição. Foram quase 500 anos sobre uma mesma doutrina, que não levava em conta o direito e a opinião das comunidades que vivem na Amazônia, com maneiras muito peculiares de viver. A partir de agora se inicia um novo processo. Os povos da floresta têm direitos. E não se pode impor nada sem levar em consideração opiniões, crenças, tradições dessas comunidades que aqui moram.
Mas de fato, a gente vê que desde muitos governos, essa política é considerada como um empecilho. O caso mais recente foi o que aconteceu no Equador com as petroleiras, que a justiça deu a razão aos povos indígenas contra o governo, e o governo prometeu rever essa decisão. Por que entre os governos da Pan-Amazônia, em geral, existe essa tentativa de tirar dos povos indígenas os direitos conquistados?
Estamos num tempo de transição. Nós ainda não consolidamos a nova doutrina, que eu chamo de doutrina pluralista, ou doutrina da autodeterminação dos povos. Há muitas pessoas ainda que consideram que os planos de desenvolvimento deveriam ser feitos apenas pelas pessoas que estão na cidade, ou que tiveram alguma educação formal dentro da universidade. Essas seriam as pessoas indicadas para isso, e as outras pessoas, outros saberes, não seriam levados em consideração. Trata-se de “colonialidade”. Os conquistadores europeus fizeram isso com os ameríndios. E, hoje, os neoconquistadores, pessoas do próprio país mesmo, fazem isso com a população amazônida. São, normalmente, oriundos de outras regiões desses países, que se sentem como únicos conhecedores dos processos de desenvolvimento. É um grave erro.
Sei que não é fácil para aquelas pessoas que estudaram a vida toda no sentido de que é a sociedade hegemônica que deve estabelecer os projetos de desenvolvimento. Mas isso nos levou à crise climática. Mudar e dizer que tem que levar em consideração a opinião das sociedades minoritárias, não é fácil. Isso é um processo. Então, hoje nós ainda temos nos próprios tribunais uma ou outra decisão que ainda está nos moldes do modelo anterior. Porque o modelo novo ainda não se implantou totalmente, e o modelo velho insiste em não morrer. Também, a Igreja agora se deu conta de que não há como buscar um rosto amazônico sem levar em consideração aqueles pensamentos, tradições, a cultura das sociedades que vivem na Amazônia.
O Papa Francisco quando visitou os povos originários da Amazônia em Puerto Maldonado, insistiu muito em que ele estava lá para escutar, e que eles deveriam ensinar os bispos, os missionários como fazer realidade uma Igreja com rosto Amazônico, com rosto indígena. O que isso pode significar tanto para a Igreja como para a sociedade?
Isso muda tudo, isso muda toda a visão que tivemos de como tratar os povos originários. Digo, não só os povos originários, mas os demais povos que possuem cultura diferenciada, por exemplo, os quilombolas, os afrodescendentes, não são povos originários, mas são povos que se estabeleceram na Amazônia com uma cultura diferenciada da sociedade hegemônica. Os ribeirinhos também, possuem uma cultura própria. Aqui está a chave da questão, e o exemplo foi dado pelo Papa.
De outro lado, a forma com que os povos da floresta enxergam o mundo pode ser a solução para muitos problemas da sociedade hegemônica. O melhor exemplo acabou de acontecer na Amazônia, em proporção de escândalo mundial. Foram as queimadas feitas propositalmente por aqueles que enxergam a floresta como um obstáculo ao desenvolvimento. As sociedades que se estabeleceram na Amazônia, com características culturais muito próprias, diferentes da sociedade hegemônica, precisam da floresta em pé para que possam ter comida, para que possam ter remédios.
Esse modelo de vida, ainda que se fale só em termos econômicos, é mais lucrativo do que o modelo de desenvolvimento predatório da sociedade dominante. Hoje, o que se tem muito claro, é que esse projeto da sociedade dominante não deu certo. Ele foi implantado já há mais de 40 anos na Amazônia, pelo menos no Brasil.
No Brasil, para financiar esse plano houve três grandes fontes públicas: Banco do Brasil, Banco da Amazônia e Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). Não faltou dinheiro. Porém o resultado não se coadunou com a Amazônia. A região tinha uma taxa de desmatamento de 0,5% na década de 1970. Essa taxa atinge hoje em torno de 20%.
Essa parte desmatada hoje concentra 9 em cada 10 mortes de ativistas no campo do Brasil. E mais. Desde 1995, foram libertados cerca de 55 mil trabalhadores escravizados em todo o país. Metade estava na Amazônia brasileira.
Outra consequência da implantação desse modelo foi um forte êxodo rural. Em 1960, 35% da população da Amazônia era urbana. Hoje, após a massificação desses projetos, quase 80% dos amazônidas estão nas cidades.
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região é inferior ao da média nacional – que já é vergonhoso. Portanto, a injeção de dinheiro público promoveu mais concentração de renda, desmatamento e violência. A conclusão é que esse plano, baseado em atividades predatórias, não obteve sucesso.
Que papel pode desempenhar diante dessa conjuntura, dessa realidade, o Sínodo para a Amazônia?
O Sínodo tem um papel muito relevante. Ele deve continuar o discurso profético dos bispos da Amazônia. Desde a Carta de Santarém de 1972, os bispos da Amazônia brasileira vêm denunciando o modelo de desenvolvimento predatório, como um modelo que não respeita os povos da floresta e a criação. Se o alerta dos bispos tivesse sido ouvido, não estaríamos, na Amazônia, nesta crise socioambiental.
Espero que o Sínodo continue com essa trajetória da Igreja na Amazônia, agora reforçado pela escuta que o antecedeu – que foi uma das coisas mais extraordinárias que se passou na Igreja nos últimos anos. Acho que desde o Concílio Vaticano II não se tem algo tão participativo dentro da Igreja, como se abrir para ouvir as comunidades locais, para saber como deve ser uma atuação mais autêntica, mas inculturada na realidade dos amazônidas. Eu vi nos últimos anos a alegria dos povos ao ser ouvidos e a esperança de ter uma Igreja de presença, não uma Igreja de visita apenas. O Sínodo pode ajudar na passagem de uma sociedade colonialista para uma sociedade plural, que respeita a todos.
Inclusive, o senhor foi convocado pelo Papa Francisco para ser auditor desse Sínodo para a Amazônia, desde seu conhecimento em direito indígena. Qual é a voz que vai levar para a assembleia sinodal e desde onde vai tentar convencer os padres sinodais, que são os que depois vão poder votar o documento final, sobre a importância dessa realidade, de defender os direitos dos povos indígenas, nem só para a Igreja, como para a sociedade?
Eu vou levar toda minha história na Amazônia e o conhecimento que adquiri na defesa dos povos da floresta. Sou oriundo de uma família de ribeirinhos. Vou levar a nova doutrina jurídica em pleno processo de descolonização do Direito. Isso para mostrar que não apenas a Igreja, mas também a Ciência Jurídica das Américas está em processo de transformação.
Essa evolução, em certa medida, também está acontecendo na Igreja. Até o Vaticano II a Igreja era organizada a partir do Romano Pontífice, depois foi mudando, e no ano passado, o Papa Francisco promulgou a Constituição Episcopalis Communio, que diz que a Igreja se organiza a partir do Sínodo.
Sei que não é fácil aceitar esses novos ventos depois de 500 anos de colonização e de colonialidades. Mas é o caminho para se viver uma ecologia integral. A Amazônia é mesmo esse campo de prova da mudança que seus povos querem fazer.
O Sínodo para a Amazônia deve gerar um documento final. Desde o âmbito no qual trabalha e é especialista, o que não deveria faltar nesse documento final?
A primeira parte do Instrumentum Laboris é muito clara quando fala da voz da Amazônia, dos problemas e do clamor dos seus povos e comunidades. Eles denunciaram um modelo de desenvolvimento que lhes foi imposto e que lhes trouxe destruição. É o mesmo modelo denunciado pelos bispos em 1972, como exploração de madeira, pecuária em área de floresta, mineração, energia e monocultura. Essa denúncia profética contra essas atividades não pode faltar, sob pena de a Igreja ser cúmplice da destruição da Criação.
De outro lado, há novos caminhos, tanto do ponto de vista socioambiental, como econômico, que trazem respeitos aos habitantes da Amazônia e à Criação. Espero que eles sejam apontados também.
Acho que o momento não poderia ser mais propício, a Amazônia sempre foi tida como a periferia do mundo, e agora, o mundo precisa entender que ela está na centralidade, como o Papa Francisco já havia percebido ao escrever a encíclica mais lida no mundo: a Laudato Si.
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