segunda-feira, 24 de maio de 2021

Sonho eclesial: "O modelo pastoral na Amazônia tem de ser marcadamente laico"


Depois de percorrer o sonho social, ecológico e cultural, a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), juntamente com a Verbo Films, acaba de lançar o vídeo do quarto e último sonho da exortação pós-sinodal Querida Amazônia, o sonho eclesial.

Num relato conduzido mais uma vez por Mauricio Lopez, até há poucos meses atrás secretário executivo da REPAM, vozes diferentes fazem uma leitura da realidade do que talvez possa ser considerado o sonho "o mais desafiante, o mais complexo, no qual há grandes esperanças, mas também muitos caminhos a percorrer", nas palavras de Mauricio.

Estamos perante um sonho que "pede novos rostos para a Igreja, que sejam coerentes com a diversidade cultural, que sejam coerentes com o apelo do nosso tempo, o grito da terra e o grito dos pobres". A Igreja da Amazônia enfrenta o desafio "de anunciar a vida, de anunciar o Reino, de trazer o Evangelho de Jesus no coração, mas uma dinâmica que acolhe, que respeita, que promove, que acompanha, que é fiel ao Magistério da nossa Igreja".

Neste sentido, o vídeo insiste que "não podemos abandonar a missão da Igreja de ser fiel a si mesma, não somos apenas uma ação social que poderia ser associada a uma ONG. Somos um rosto concreto que se encarna na realidade, que quer promover e acompanhar estas diversas expressões multiformes, com todas as vozes diversas, mas com um sentido do Reino, do Evangelho, de ser Igreja, à luz do projeto de vida e querendo sempre caminhar numa dimensão integral".



A evangelização é realizada dentro das culturas, o que leva o diácono Francisco Lima, secretário executivo do Regional Norte 1 da CNBB, a advertir que os evangelizadores não podem "usar da sua própria cultura tentando fazer o anúncio do Evangelho a partir da sua cultura", que devem "procurar o diálogo com a interculturalidade entre evangelizadores e nacionalidades, com respeito e cuidado pela casa comum", de acordo com a indígena Kichwa Gloria Grefa. É um caminho de encarnação, procurando "aceitar o desafio com coragem e encarnar ou inculturar a liturgia e todos os outros elementos", algo em que o Padre José Miguel Goldaraz, missionário durante décadas na Amazônia equatoriana, insiste. Os povos amazónicos reconhecem, como diz Gorete Oliveira, da Equipe Itinerante, "a Igreja está se aproximando cada vez mais do nosso povo, se aproximando do nosso jeito de ser, a nossa maneira de viver, a nossa maneira de falar, a nossa maneira de comer, dos nossos costumes, dos nossos mitos, dos nossos rituais”.

O grande desafio é que "as espiritualidades das comunidades amazónicas, a sua visão do bem viver, devem também fazer parte deste caminho inculturado", diz Mauricio Lopez. Isto torna-se realidade numa "perspectiva de evangelização do social, a partir da perspectiva das cosmovisões de cada um dos povos e comunidades desta Amazônia", e que isto acontece por transbordamento, que se concretiza: "são rostos novos, é todo um ministério, em coerência com o Evangelho e com a nossa Igreja, mas que se alarga, que se expande, à maneira do Reino, que se expande a todas as culturas e, portanto, a inculturação e a interculturalidade como chaves do processo", segundo o ex-secretário da REPAM.

No campo dos sacramentos, aqueles que vivem na Amazônia dizem que "não devemos negar ninguém", e que não podem ser usados para "fazer negócios", para ganhar dinheiro, mas sim "para o poder espalhar a outras pessoas, a outros irmãos e irmãs, para os poder atrair", ideias explicadas por Eleuterio Temo, da Amazônia boliviana. Esta mesma visão é partilhada por Maria Petronila Neto, da Amazônia brasileira, para quem para além da inculturação dos sacramentos, ela vê a necessidade de "ser oferecido de forma acessível para todos".



Centrando-se na Eucaristia, Dom Erwin Kräutler reflete sobre o fato de, na Amazônia, "80% das nossas comunidades não participam da Eucaristia, a não ser uma, duas ou três vezes ao ano", pelo que questiona "como nós podemos viver a Eucaristia nessas comunidades". Trata-se de "fortalecer o tecido eclesial", afirma Tania Ávila, para quem "sem justiça não há Eucaristia", que exige que "os planos de formação dos sacerdotes incluam tempos de convivência no território, para se sentirem parte do povo, do povo que cuida da vida. Para aprender com o povo. Conhecer-se a si próprio como terra. Sentir-se corresponsável pela casa comum”.

Na inculturação da liturgia e do ministério, Mauricio Lopez coloca o rito amazónico, seguindo o exemplo de outros ritos locais, como o congolês, que ajuda a Amazônia a marcar "os seus rostos particulares, a criar uma verdadeira expressão litúrgica própria", algo que também tem a ver com o ministério, que deve ser desenvolvido, explorando novos ministérios e reconhecendo o que está "a fazer a diferença na vida quotidiana". Mauricio vai ao ponto de dizer que para além do diaconado permanente, é possível, eventualmente, a possibilidade de sacerdotes casados, bem como "uma atribuição de mais papéis às mulheres, que são as que estão mais presentes, para que não falte o acesso à Eucaristia, porque é ela quem faz a comunidade".

"A mulher é a alma da família", disse Dom Joselito Carreño, para quem "uma Igreja, a família de Deus na Amazônia, sem a presença ativa e participativa das mulheres, não lhe poderíamos chamar uma Igreja cristã católica”. Na Amazônia, tal como "são as mulheres as primeiras a anunciar aos discípulos que o Senhor havia ressuscitado", diz o padre Adelson Araujo dos Santos, "são as mulheres as pioneiras, as primeiras a chegarem, a ajudarem a comunidade local a se organizar e a fundar aí uma Igreja particular", o que nos desafia a "dar este reconhecimento de maior espaço as mulheres, também nas decisões". Sobre este ponto, "não é clericalizar as mulheres, mas é reconhecer seu lugar e seu direito de contribuir nas decisões", insiste Doris Vasconcelos, para compreender que "na Amazônia profunda, leigos e leigas, mergulhados entre conflitos e contradições, são protagonistas de vivências de um outro projeto de sociedade", como sublinha Bené de Queiroz.




É uma questão de compreender e assumir que "o modelo pastoral na Amazônia tem de ser marcadamente laico", segundo Mauricio López, algo presente nas comunidades eclesiais de base "que nos deram tanta vida a nível da América Latina, e também a nível da Amazônia". Mauricio dá outros exemplos, como a REPAM que tornou possível "gerar processos de resposta conjunta a situações em que não podemos fazê-lo sozinhos"; a Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA), "uma iniciativa sem precedentes, fruto do discernimento sinodal, que procura articular formalmente as diversas presenças da Igreja, para um plano pastoral como um todo"; as equipes itinerantes, "presenças que acompanham a vida"; as mulheres, "que são as que sustentam a missão da Igreja na Amazônia"; os ministérios especiais, "para que possam assumir papéis de serviço significativos".

Um elemento fundamental é o encontro, que a Irmã Liliana Franco define como "o único caminho para a humanização", que exige "transformar-nos em especialistas no encontro, na construção de comunidades eclesiais vivas, dinâmicas, credíveis e empenhadas na transformação da realidade", procurando "viver a partir da lógica da encarnação".

Neste sentido, "há tudo a ser feito no meio desta pandemia, no coração deste mundo crucificado", insiste Mauricio Lopez, que sublinha mais uma vez que o caminho é transbordar, assumir o "sensus fidei", a fé do povo de Deus, sem ideologias particulares. Na sua opinião, "a Amazônia precisa de uma resposta concreta", convidando todos a fazer seus os sonhos do Papa Francisco, "a afirmar o que já tem vida e a desenvolvê-la, a tentar promover o que ainda não está desenvolvido". Recordando o que ele chama os pecados do Sínodo, ele reconta, para além do pecado contra a Amazônia, "o pecado da auto referencialidade". Por esta razão, diz que é tempo "para esta nova ministerialidade, para um novo trabalho para a Igreja, para toda a Amazônia", que "já está a iluminar toda a Igreja universal, já está a gerar processos que são irreversíveis".



Luis Miguel Modino, assessor de comunicação CNBB Norte 1

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