segunda-feira, 25 de julho de 2022

30 de julho: dia mundial de enfrentamento ao tráfico de pessoas


Desde a instituição da data para refletir o tráfico de pessoas, houve avanços e retrocessos em defesa da vida

por CLÁUDIA PEREIRA (pela Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB)

Os noticiários brasileiros relatam, com regularidade nos últimos anos, denúncias de tráfico de pessoas. No sábado, 30 de julho, comemora-se o dia mundial de enfrentamento ao tráfico humano, data instituída em 2013 pela Assembleia Geral da Nações Unidas.

O Relatório das Nações Unidas divulgado em 2021, revelou que mais de 50 mil pessoas foram identificadas como vítimas de tráfico humano. No Brasil, com a pandemia de COVID-19 e o aumento das vulnerabilidades, o tráfico de pessoas aumentou consideravelmente. O relatório aponta que mulheres e meninas são as maiores vítimas para a exploração sexual; e homens os mais procurados para o trabalho escravo.  

Segundo o Protocolo de Palermo, é considerado como tráfico de pessoas recrutar, transportar, alojar, transferir ou acolher alguém, recorrendo a ameaças ou uso da força ou outras formas de coação, abusos e situações de vulnerabilidade com entrega de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. Portanto, ainda que haja consentimento por parte da vítima, estes atos são classificados como crime. No Brasil, existe a Lei Federal nº 13.344/2016, que além de definir o tráfico de pessoas garante a reinserção das vítimas na sociedade.

O relatório nacional sobre tráfico de pessoas, produzido e divulgado em 2021 pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) em parceria com a Secretária Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública (SENAJUS/MJSP), identificou duas modalidades mais exploradas no Brasil: trabalho análogo à escravidão; seguido da exploração sexual.

Existem quatro classificações para as modalidades do tráfico de pessoas em todo mundo: Tráfico para fins de exploração sexual; laboral ou trabalho análogo a escravidão; tráfico de migrantes; e tráfico de órgãos. No Brasil, outras modalidades foram reconhecidas pelo Ministério da Justiça, entre elas a servidão doméstica, mendicância e o casamento servil.

Desde a criação da Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano, da CNBB, em 2016, a Igreja tem avançado nas articulações de combate e prevenção em todo do País.

Dom Evaristo Spengler, Presidente da Comissão, diz que a Igreja se organizou para enfrentar as amarras da escravidão a nível nacional e se desloca pelas regiões do Brasil, bem como tem multiplicado e sensibilizando a sociedade sobre o tráfico humano. A comissão reúne questões fundamentais sobre a prevenção, proteção e denúncias em torno da temática com capacitações realizadas durante todo o ano no País. 

Em 2014, o tráfico humano foi tema da campanha da fraternidade e o resultado da reflexão fortaleceu ações dentro da Igreja em conjunto com a sociedade civil. Representantes da comissão, organizações, órgãos públicos, núcleos de defesa e pesquisadores expõem o reflexo do enfrentamento nos últimos anos, sobretudo ao contexto da pandemia e a crise econômica social no País. Os entrevistados apontam os avanços e retrocessos nas políticas públicas, dados subnotificados do crime, regiões com maiores dificuldades de enfrentamento ao tráfico de pessoas.

O TRÁFICO HUMANO NA GRANDE METRÓPOLE

Irmã Eurides Alves de Oliveira, religiosa da Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria, integra a Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB e coordenou em âmbito nacional a rede Um Grito Pela Vida.

Atuando na cidade de São Paulo, Irmã Eurides fala da realidade do enfrentamento em grandes cidades e as articulações não efetivas junto ao poder público. 

“A ausência de dados é a maior dificuldade. Existem registros de denúncias, mas são subnotificadas. Temos os dados nacionais, mas são muito pulverizados, cada órgão têm suas estatísticas que são importantes, mas que não dão conta da dimensão desta realidade. Em São Paulo, enfrentamos a situação do trabalho análogo a escravidão que envolve os migrantes, que são explorados no mercado informal, oficina de costura, indústrias e outros setores. Temos o tráfico para o trabalho infantil e a exploração sexual. A fome e a miséria na vida das pessoas que vivem nas áreas urbanas da região sudeste as deixam suscetíveis a este crime. Em nosso atual cenário, o tráfico acontece até pela anuência da pessoa, mesmo sabendo que não é o certo, mas acaba sendo a alternativa na vida como meio de sobrevivência. A região sudeste por concentrar o maior número das metrópoles, é onde se tem a maior dificuldade de mensurar a quantidade e o enfrentamento ao tráfico de pessoas”, disse a Irmã.

A religiosa conta que até o ano de 2016, São Paulo tinha um núcleo de enfrentamento bastante combatível, mas há mais de dois anos esse núcleo está inativo. “Nós quanto comissão e sociedade civil temos o dever em chamar atenção do estado para a urgência em reativar os espaços e os mecanismos de enfrentamento. Talvez um dos grandes problemas seja o fato de que em nosso País as políticas públicas não sejam de estado e sim de governo, não há prioridade e isso desestrutura os mecanismos. O desafio neste momento é a sociedade ficar atenta às propostas de políticas de governo quanto à pauta do tráfico humano. Estamos em período eleitoral, temos que ficar atentos a quais candidatos pautam este tema em suas plataformas de governo e após as eleições batalhar para que o Congresso referende o enfrentamento como política de Estado”.

Foto: Pixabay

ALICIAMENTOS DURANTE A PANDEMIA

Silvia Cristina Xavier, coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria Estadual da Justiça e Trabalho do estado do Paraná, coordena junto a equipe um trabalho de prevenção que estreita as relações com os órgãos e instituições do estado, que por estar na tríplice fronteira é potencial rota para o tráfico de pessoas.

“Durante a pandemia, não paramos de fazer atendimento e os serviços de prevenção. Nesse período, tivemos relatos, mas não tivemos a denúncia formalizada. São casos que em razão do isolamento a vítima estava com proximidade do aliciador e não se sentiu segura. Isto colabora para a subnotificação das denúncias. Manter uma articulação junto aos órgãos públicos e instituições é uma constante. Precisamos manter a todo tempo a capacitação, o diálogo e o trabalho de prevenção nestes espaços para que as autoridades coatoras recebam as denúncias, entendendo que é de lei realizar a investigação”.

Silvia também comentou sobre o aumento dos aliciamentos pelas redes sociais, razão pela qual tem se buscado capitar os servidores para prevenção destes crimes. “Realizamos capacitações nos hospitais de referência do estado do Paraná, na rede de educação, no judiciário, conselho tutelar e assistência social. A campanha de enfrentamento no estado do Paraná é permanente e acompanha a agenda nacional e do estado, sendo uma das formas de multiplicar agentes. Temos buscado outras estratégias para alcançar mais espaços, a exemplo das igrejas cristãs que participaram da capacitação neste mês de julho. Toda essa articulação e relação com as organizações, instituições e a Igreja tem ajudado, mas não diminuíram os crimes.  O ideal seria se as pessoas conhecessem a lei, soubessem o que é tráfico de pessoas para reprimir esse crime perverso”.

FALTAM FISCALIZAÇÕES NO NORTE DO PAÍS

Socióloga e doutora em Sociedade e Cultura, Márcia Maria de Oliveira da Universidade Federal de Roraima, partilha sobre a ausência dos estados e fiscalização na região Norte do país ao enfrentamento ao tráfico humano. Ela afirma que desde 2017 tem havido uma ruptura nos planos de enfrentamento nacional ao tráfico na região.

“Nos últimos anos, isso tem sido muito drástico principalmente aos núcleos que estavam sendo posicionados em regiões estratégicas a exemplo das fronteiras entre Brasil, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana Inglesa e Francesa. Com isso, as rotas se multiplicaram e as redes do crime se empoderam na perspectiva da impunidade. Um fator que contribui para o crime de tráfico de pessoas na região Norte é a presença do garimpo ilegal que tem se multiplicado. Com essas rotas do tráfico de ouro aumentou o número de meninas e mulheres vítimas da exploração sexual. O cenário atual que temos na região, a política está a serviço do fortalecimento da rota do tráfico”.

Márcia comenta, ainda, que a ausência da fiscalização é grave e nos últimos relatórios sobre trabalho escravo não aparecem ocorrências no estado de Roraima e em nenhum outro da região amazônica. “Isso acontece porque os governos além de não permitir, dificultam quando o ministério do trabalho tenta fazer alguma fiscalização. O estado nega a existência de milhares de pessoas trabalhando em regime de escravidão e que morrem de exaustão. Outro agravante é a reabertura das grandes madeireiras que aliciam trabalhadores e sem registro no ministério do trabalho. Portanto, o desmatamento ilegal, o garimpo ilegal e os fatores que violam o meio ambiente nestes últimos anos estão muito próximos do tráfico de pessoas na região amazônica. As modalidades do tráfico correm soltas na região. A não fiscalização por parte dos órgãos responsáveis que foram sucateados. Não temos expectativas de mudanças”.

ENFRENTAMENTO PRECISA SER MAIS EFICAZ

Questionado sobre os avanços no enfrentamento ao trabalho análogo a escravidão desde o Protocolo de Palermo e sobre as progressões junto ao Ministério Público do Trabalho e a sociedade civil, Italvar Filipe de Paiva Medina, procurador do Trabalho e vice Coordenador Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete/MPT), afirma que houve progressos com a criação da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), incluindo a “lista suja”, que é o cadastro de empregadores autuados por trabalhos análogos a escravo, bem como tem aumentado o foco das instituições no combate ao trabalho escravo.

“Antes o foco era voltado para as atividades rurais, depois foi reforçado as atenções para as fiscalizações em áreas urbanas e bem recente em razão das denúncias tem ganhado destaque as situações de trabalho escravo doméstico. Um fator que tem gerado desafios são as atenções às vítimas após resgate. Neste sentido, a preocupação após os resgates é para que estes trabalhadores e trabalhadoras não fiquem em situação ainda mais vulnerável. Assim, buscamos seus direitos e meios para que sejam assistidos”, comentou, lembrando, ainda, que um passo importante para fomentar o tema é a criação das comissões estaduais de erradicação ao trabalho escravo que têm colaborado no enfrentamento e nas ações pós resgate.

“Infelizmente, não houve só avanços, tivemos retrocessos. Atualmente temos aproximadamente 44% dos cargos vagos. Desde 2014, o governo federal não realiza concurso público. Ainda que estejamos mantendo as ações repressivas há uma queda na inspeção de rotina, sobretudo as inspeções rurais, o que abre espaço para exploração do trabalho contemporâneo. Os avanços dos garimpos ilegais e do desmatamento têm contribuído para a superexploração do trabalho escravo com a redução da fiscalização e dos órgãos ambientais. Essas atividades clandestinas estão intrinsicamente relacionadas com a exploração do trabalho irregular com situações análogo a escravidão. A região do país com maior déficit de fiscalização é a região norte. São estados com áreas territoriais muito grandes, seus centros urbanos também possuem áreas rurais extensas e uma presença do estado muito pequena”.

E diante da precarização das políticas de enfrentamento e políticas sociais, Medina lembra que o aumento da conscientização é importante, bem como o voto em parlamentares que defendam a garantia dos direitos humanos.

“É importante frisar que o combate ao trabalho escravo no Brasil só foi reconhecido e intensificado somente pela iniciativa da sociedade civil, foram pressões da sociedade civil organizada a exemplo da Comissão da Pastoral da Terra na década de 1970 que deram início ao combate do trabalho escravo no país. A sociedade civil teve bastante participação ativa na Conatrae ao exigir as ações de políticas públicas do governo”.

Polina Tankilevitch/Pexels

DENUNCIAR É FUNDAMENTAL

A Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB além de exercer como pastoral com gestos e ações de solidariedade para com as vítimas, realiza formação para fazer incidência política e chamar atenção da sociedade para o crime do Tráfico de Pessoas. Formando sujeitos sociais é possível entender a dinâmica do tráfico e chamar atenção do estado. 

Em março, a comissão publicou um manifesto pelo qual convoca os órgãos competentes e a sociedade civil a se comprometer com as articulações das políticas públicas de combate ao tráfico de pessoas no Brasil. 

É importante reforçar que a denúncia é fundamental para punir este tipo de crime e os canais preservam o anonimato e podem ser feitas através do Disque 100 e do Ligue 180.

Para situações do tráfico para trabalho escravo existe também o canal do sistema Ipê  https://ipe.sit.trabalho.gov.br. O sistema Ipê coleta denúncias em todo território brasileiro.   

Fonte: O São Paulo

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