Presidente da Comissão Pastoral da Terra desde abril de 2021 e integrante da Comissão Episcopal para Ação Sociotransformadora da CNBB (Cepast), Dom José Ionilton Lisboa de Oliveira avalia o ano que se encerrou e as perspectivas para o país, a Igreja e a CPT em todo este cenário, além da mudança de região de sua atuação na Amazônia, até então atuando como bispo da Prelazia de Itacoatiara (AM) em transferência para a Prelazia do Marajó (PA).
Qual avaliação podemos ter do cenário do país, no ano que se encerrou?
Eu diria que nós vivemos, hoje, um cenário melhor do que quando encerramos 2022. O governo que assumiu em janeiro tem sinalizado para uma mudança em determinadas áreas de atuação, retomando as chamadas ‘comissões de escuta do povo’, retirando alguns projetos danosos, como a facilitação da posse de armas e de munição; criando o Ministério dos Povos Indígenas; retornando um Ministério do Meio Ambiente que realmente cuida do meio ambiente; e um Ministério de Direitos Humanos e Cidadania com o rosto verdadeiramente de direitos humanos.
Contudo, sabemos que o governo prometeu, por exemplo, desmatamento zero, e eu acho que nesse sentido ainda tem que avançar mais. Pode ser que haja a intenção, mas esse governo, eleito por uma força ampla política, tem enfrentado muita dificuldade com um Congresso ultraconservador. As causas que nós defendemos - e até diria que o governo também defende - têm encontrado muita resistência, como é o caso do Marco Temporal dos povos indígenas, da aprovação dos agrotóxicos e de uma lentidão no processo da Reforma Agrária.
Creio que 2023 foi um ano para aprimorar e manter o que vínhamos querendo e lutando, e 2024 se abre como sinal de que temos que lutar mesmo. Ou seja, não se conquista direitos esperando de braços cruzados o que o Governo ou o Congresso Nacional possa nos oferecer.
E em relação à Igreja brasileira?
No que diz respeito à Igreja, este também foi um ano de mudança na Coordenação Nacional e na presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Aí, foi essa fase de adaptação, com alguns sinais bons, algumas manifestações bem claras, como a crítica à derrubada dos vetos do presidente à questão do Marco Temporal, mas também momentos em que houve uma certa demora para se manifestar. Espero que a CNBB possa dar passos mais firmes, inclusive fazendo com que cada organismo e comissão que trabalha determinado tema possa ter esse espaço maior para se manifestar de forma urgente.
Sobre a CPT, qual sentimento deve estar presente neste ano em que se inicia a caminhada rumo ao jubileu de 50 anos?
Então, acho que nós, enquanto CPT, também devemos continuar na luta, para que a gente consiga ajudar o nosso povo — camponeses, ribeirinhos, quilombolas, pescadores, indígenas… — a terem seus direitos respeitados, a permanecerem em suas terras e, também, a conquistarem sua terra.
Nosso trabalho e nossa missão é ao lado do povo e suas lutas, ajudando a se organizarem. A gente espera que neste ano possamos avançar neste serviço, fortalecer os grupos de base, articular melhor cada regional e as articulações que nós temos. Que tudo seja em vista deste objetivo maior, de apoiar o povo trabalhador do campo a ali viver, ali permanecer e, também, a conquistar sua terra sonhada, a partir da reforma agrária.
Na nossa assembleia, que vamos realizar em abril, vamos avaliar os três anos de caminhada e planejar os próximos três anos, incluindo a celebração dos 50 anos de criação da nossa CPT. Isto com certeza vai nos fortalecer neste compromisso com os pobres da terra. Inicialmente trabalhando com os camponeses, depois, a CPT foi trabalhando com os povos indígenas — onde o Cimi1 ainda não chega —, junto aos pescadores — onde o CPP2 ainda não chega —, e com todas as pessoas que trabalham no campo. Nossa perspectiva é esta: fortalecermos nosso trabalho e compromisso de defesa, ao lado das comunidades, não fazendo no lugar delas, mas acompanhando e contribuindo para fazer acontecer a conquista dos seus direitos.
O ano de 2023 foi muito marcado pelo agravamento dos efeitos das mudanças climáticas, com destaque para a seca enfrentada na Amazônia, região de sua atuação mais direta.
De fato, nós enfrentamos as consequências da crise climática, especialmente aqui na Amazônia, onde eu vivo e trabalho, mas também em outros lugares do Brasil, com secas e enchentes. Foi um alerta e um grito da natureza, que esperamos que tenha sido escutado por todas as pessoas, pelos governantes, igrejas e por todos os homens e mulheres de boa vontade, independentemente de ter ou não uma prática religiosa.
Como é possível olhar com esperança para uma realidade tão desanimadora de empreendimentos danosos ao meio ambiente e à vida?
Devemos manter, sim, esse olhar de esperança, porque ele nos faz agir e acreditar que é possível uma transformação, também no nosso cuidado com a Casa Comum, na continuidade da nossa luta em defesa dos nossos biomas. É manter essa esperança para dizer que ainda podemos, com a nossa participação, com a nossa luta, continuar enfrentando esses projetos danosos para a natureza, como são os projetos de exploração de petróleo e gás.
Vamos precisar, em 2024, continuar sendo uma voz para dizer ‘Não’ à exploração do petróleo na foz do Amazonas. Precisamos continuar mobilizando as pessoas para dizer que não dá para continuar o desmatamento, seja na Amazônia, no Cerrado, na Caatinga, nos Pampas ou na Mata Atlântica. Se a gente continuar desmatando como fizemos nestes últimos anos, corremos um sério risco de ter um aumento da temperatura, de um grau tal, que a vida na Terra pode ficar insuportável.
Mas temos que manter essa esperança, porque se nós, que somos da luta e compreendemos a defesa da Casa Comum, que defendemos a floresta em pé, se a gente parar e desanimar, aí é que as coisas se complicam. Vamos ter que continuar na luta, fazendo este trabalho de conscientização ecológica e defesa dos nossos biomas e dos nossos povos, e de tudo aquilo que ajuda o mundo a ter mais vida, inclusive denunciando, também, tudo aquilo que traz consequências para a crise climática crescer ainda mais.
Após seis anos à frente da Prelazia de Itacoatiara (AM), o senhor está sendo transferido para a região do Marajó (PA). Como estão as expectativas diante deste novo desafio?
A expectativa é que vou continuar na Amazônia, praticamente fazendo a mesma missão, porque a realidade é semelhante. Temos que continuar na mesma luta em defesa desse bioma, junto dos mais empobrecidos, na defesa dos diretos humanos, no combate ao trabalho escravo, no enfrentamento ao tráfico de pessoas e à exploração sexual de crianças, adolescentes e jovens, na conquista da reforma agrária, e pra fazer com que a nossa fé cristã católica ajude a transformar tudo aquilo que é anti-vida na sociedade. Apenas vou mudar de área territorial, mas a missão vai continuar. É assim que eu penso e desejo, quando chegar lá, pisar no chão, ouvir bastante quem já vive ali, e ver como eu posso contribuir a partir da minha vida e da minha experiência.
Estou indo como alguém que quer somar, alguém que quer continuar a realizar a missão de Jesus: em defesa do bem, da verdade, da pessoa humana e da nossa Casa Comum, como tem pedido a própria Igreja, através da insistência do papa Francisco. Além da igreja local, também estarei junto ao Regional Norte 2, que inclui os estados do Amapá e Pará.
Que mensagem o senhor poderia transmitir para a equipe de agentes da CPT e as comunidades e povos acompanhados?
Quero dizer a todos os nossos agentes, nos regionais, nas grandes regiões, nos grupos de base, que a missão é nossa, e a missão continua sendo de cada um e cada uma de nós. A CPT é uma organização eclesial social, para prestar um serviço junto dos camponeses, para ser força de comunhão, apoio e solidariedade, na defesa da terra, das águas, dos territórios, da natureza e dos povos. Eu desejo a cada agente da nossa CPT muita sabedoria, muita proteção de Deus e muita coragem para fazer a nossa missão acontecer.
Que tenhamos uma boa assembleia no mês de abril, onde estaremos em avaliação e planejamento, fazendo eleição da diretoria, da Coordenação Nacional e do Conselho Fiscal. Vamos fazer com que, em cada lugar onde estejamos, a gente possa contribuir para o bem do nosso povo, ajudar nosso povo a ter vida, a estar protegido, a conquistar o que lhe é de direito. Que o nosso povo e comunidades do campo tenham condições de ter acesso à terra e a cultivá-la.
O caminho também é fazer incidência política, em cada base, nos municípios e regiões, e em nível nacional, principalmente neste Congresso que é tão resistente aos direitos dos homens e das mulheres do campo. E que continuemos mantendo a nossa campanha de enfrentamento à violência no campo3, que é a nossa grande meta a partir da assembleia de 2021, que começou com iniciativa da CPT, se ampliou com outras forças vivas e hoje é construída junto com outras pastorais, organismos e movimentos. Dando-nos as mãos, seremos mais fortes e, com certeza, seremos capazes de denunciar todas as violências e contribuir para que as causas dessas violências cessem e, assim, os trabalhadores e trabalhadoras do campo possam viver em paz.
1 Conselho Indigenista Missionário
2 Conselho Pastoral dos Pescadores
3 Campanha Nacional Contra a Violência no Campo
Imagem de capa: Cláudia Pereira | Articulação das Pastorais do Campo
Nenhum comentário:
Postar um comentário